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Gesto heróico (Mário Barreto França)

Gesto heróico

A sineta bateu, convocando o Colégio.
A sala estava cheia... O diretor _ egrégio
E antigo mestre _ entrou.
                                            Ninguém o reparara;
Falavam de uma falta enorme: alguém roubara
Da bolsa de um aluno a clássica merenda.
E o castigo era grande: _ uma surra tremenda,
Vinte varadas!... Qual seria o desgraçado
Que iria suportar o braço desalmado
Do velho diretor, aplicando o castigo?
Talvez fosse um colega, ou um bedel antigo...

Havia tanta gente ali humilde e pobre...
E a aparência, afinal, muita miséria encobre...

Enorme burburinho enchia toda a sala...
_ Silêncio! _ brada o mestre _ Aqui ninguém
                                                             mais fala.
Houve uma falta grave _ um roubo. E é oportuno
Que eu fale claramente: esse tão mau aluno,
Que cometeu tal erro, há de pagar bem caro.
Bem caro, estão ouvindo?
                                             E o que mais eu reparo
É ver que foi debalde o esforço de ensinar-vos
O caminho do bem, da retidão... Mostrar-vos
Que se deve vencer por força de vontade;
Que acima de qualquer febril necessidade
Se coloca o dever!... E eu vejo que as virtudes
Não orientam mais as vossas atitudes!...

O murmúrio aumentou; todos se entreolharam;
E numa singular atitude calaram,
Como para mostrar a força que os fazia
Solidários na dor, na culpa ou rebeldia...

Mas, num canto da sala, humilde, magro e pálido,
Levantou-se um menino. O seu aspecto esquálido
Bem claro demonstrava a miséria sem nome
Que lhe vidrava o olhar nas convulsões da fome.
E, num gesto de quem se vota a um sacrifício
_ Como um santo a sorrir no instante do suplício _
Confessa: _ Diretor, tinha uma fome cega,
E por isso roubei o lanche do colega!
Fiz mal; ninguém tem culpa; é verdade o que digo!
Estou pronto, portanto, a sofrer o castigo!...

E seguiu cabisbaixo em direção ao estrado
Em que todo faltoso era sentenciado.

E o velho diretor lê o código interno:
"O aluno que roubar um lanche ou um caderno,
Nas costas, levará vinte fortes varadas."
E, isso dizendo, despe as costas maceradas
Do pequenino réu...

                               Vibra o primeiro açoite...
Um gemido se ouviu como um grito na noite...
Outra pancada estala... As pernas do garoto
Começavam a tremer dentro do calção roto...
E o seu olhar voltado ao azul da imensidade
Parecia implorar um pouco de piedade...

E uma onda de horror, de revolta e protesto,
Brilhava em cada olhar, vibrava em cada gesto...

Nisto, um jovem robusto e com porte de rico
Ergueu-se resoluto e disse: _ Eu vos suplico
Que permitais, Senhor, que eu sofra o seu castigo!...
A merenda era minha e ele foi sempre amigo!...
Mas, se é lei, que se cumpra a lei!...
                                       E, sobranceiro,
Seguiu para o lugar do pobre companheiro;
Tirou o paletó, curvou-se resignado
E deixou que o castigo em si fosse aplicado.
Quando soturnamente a última vergastada
Estalou, como um ai, na costa ensanguentada
Do inesperado herói, o pequeno poupado,
Soluçando, abraçou seu protetor amado;
Beijou-o humildemente e disse-lhe baixinho,
Num gesto fraternal e cheio de carinho:

_ Foste o meu salvador, meu nobre e bom amigo,
Pois sofreste por mim as dores do castigo
Que mereci, bem sei, mas não o aguentaria,
Dada a minha profunda e crítica anemia...
Fui culpado de tudo e nunca o desejara...
Suplico-te: perdoa a minha ação ignara!...
Eu saberei ser grato ao bem que me fizeste,
Implorando ao Senhor a proteção celeste
Sobre ti e o teu lar, na certeza que o mundo
Será em tua vida um roseiral fecundo,
Pois onde eu me encontrar, exaltarei, estóico,
O sublime esplendor desse teu gesto heróico!...

☆☆☆☆☆☆☆☆☆☆☆☆☆☆☆☆☆

Nós somos neste mundo uns míseros culpados:
Criminosos, infiéis e cheios de pecados...
Roubamos nosso irmão, o próximo enganamos,
Perseguimos o justo, o trânsfuga exaltamos,
E tudo o que é de mal fazemos sem piedade,
Para satisfazer nossa perversidade...

E quando a mão de Deus aplica, certo dia,
A justa punição à nossa rebeldia,
Jesus volta de novo ao cimo do Calvário
Para, por seu amor divino, extraordinário,
Receber em seu corpo os látegos e os cravos,
Destinados a nós, miseráveis escravos
Do pecado e do mal!
                                    Por isso, ó Mestre amigo,
Que sofreste, perdoando, a dor do meu castigo,
Recebe o meu afeto humilde, mas sincero,
E a minha gratidão profunda, pois te quero
Exaltar em meu ser e em toda a minha vida,
Nessa consagração de uma alma agradecida,
Que vê, no teu amor e em teu suplício estóico,
A glorificação de um sacrifício heróico!

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